Quatro vozes de mulheres e a vida um dia à vez

Margarida Vale de Gato, com Carolina Colarejo, Maria Beatriz Tavares, Maria Mota e Natalina Silva, no Centro de Dia da Sé. Dessin : Bárbara Assis Pacheco.

quatro vozes de mulheres e a vida um dia à vez
1.

No princípio havia o campo e os lavores. Éramos oito irmãos e um que morreu, o pai a monte, a mãe aflita, e sempre alguém adoecia. E foi quando ela se meteu para Lisboa para tratar uma com mais complicações. Acharam felizmente onde servir,
e então viemos todos a seguir. Eu, com jeito para coser, idade para namorar, afeiçoei-me, tive sorte, arranjei bom marido, bons sogros. Foi ele à frente, já nascida a filha,
tentar a sorte para o ultramar, pôs-nos casa, mandou-nos chamar. Angola, tão diferente, outros modos de ser livre, de ter sol; nem notei nunca que um preto quisesse mal à gente quando ia lá às sopas do jantar. Saíamos sempre aos fins de semana, há uma foto em que eu estou de fato de banho a pescar.
Casou mal o meu rapaz, não sei onde anda, mas há que precaver o qu

e deixamos. Criei 3, tenho 6 netos, 2 bisnetos e aos 85 anos tanto ainda que fazer.

2.
Nunca quis dar desgostos a meus pais, e tenho hoje duas filhas que não espero ver. Mas nunca disse mal de ninguém e não peço mais para mim: mesa para comer, cama
para dormir, casa onde viver. Agora, a minha, à R. das Canastras, é grande, eu ando por aqui desde que morreu o pai e fugi e deixei para lá a guardar gado o homem que era ruim e me fazia desgraçada. Vim servir, e tanto tempo me faltaram tecto e condições, e chegou Abril. Ajudei a União dos Trabalhadores mas não quis ocupar nunca, antes fui pagar, com o meu dinheiro e um empréstimo de cento e dez contos ao banco na altura. Gostei do ar da revolução, mas me desapego hoje destas ruas onde cheira a falta de respeito e podridão. Por isso mais fico onde me sinto em família com o meu filho, o meu neto e as arrelias da minha nora. Fiz de tudo para não passarmos fome. Não aprendi a escrever mas apanho bem as legendas, só me custa quando tenho de assinar o nome.

3.
Menina fui levada de casa de meus pais, mas melhor sorte achei que a moça do Bernardim; sempre tive bom trato e sempre gostaram de mim. Mais: fiz o que quis. Não fiquei por casa a ser prendada porque era amiga da rua, de bailes e vara larga, e tanto o ar me faltava que o meu tio acedeu a montar um estabelecimento onde eu
pudesse trabalhar. Tirei cursos, guardei livros, e pus-me cedo a namorar com o rapaz
que desde os catorze anos montou cerco à minha casa. Ora, já na altura eu pela rua
o catrapiscava, pelo que foi “ver-te e amar-te”. Muito felizes fomos, até que lhe veio a morte. Tínhamos um cão que gostava de dar cabo do terraço. Por entre visitas de filhos e vizinhos, cultivo a leitura e as minhas quadras, semeio canteiros, e ainda conversamos muito os dois, dou os meus passeios e depois com doçura conto-lhe, para que se lembre.

4. Eu cá nasci do nada e fui criada por um funileiro que tinha mão de artista, mas que todos sabiam não ser meu pai, e há quem diga que fui filha de ciganos ou comunistas. Não sei da história da mulher que pôs em verso uma mosca a zumbir quando morreu,
e se viu jazer, a gente à volta e fosca a luz, posto que aberta ainda a janela; sei, porém, do insecto insolente que ciranda em dias cinza e se enrosca adentro do que nos cerca e nos faz sós. Mas mal ou bem, não troco este presente, um dia à vez, sentir a minha fibra, mau grado os fracos nervos – antes ouço a vida que em mim vibra.