Afonso Cruz com Marcelino Alves, Ricardo, Raúl Marques, Joaquim Nobre, João Parreira, Miguel Pinto, Basílio Silva, Nuno Sousa.
Biblioteca Municipal de Beja.
No jogo de sueca, só X se concentra. Está a jogar há anos, sem parar. Tem na mão uma manilha de trunfo e tenta perceber quem tem o ás. Não é fácil, mas X gosta de fazer contas. Aquilo que nos pode ajudar pode estar em qualquer lado: nos parceiros, nos adversários, nos sucessos, nas contrariedades.
Y joga copas, que já todos sabem estar a corte. Não se lembrou. Tem amnésia e, mesmo que não tivesse, não teria vontade de se lembrar.
Lá fora passam duas motas. B foge de um polícia depois de o ter provocado com um cavalinho. B é um atleta, gosta de deixar os outros para trás.
O jogo de sueca continua. Enquanto joga uma cena de paus, R conta como era na escola: os pobres ficavam lá atrás, onde não se aprendia nada. Passava as aulas a desenhar montes. Era uma maneira de ter paisagem. Só montes? perguntou Y. E árvores, respondeu ele. Um dia até as semeei. Na mesma escola onde não me ensinaram nada. Agora, as árvores são enormes e explicam, sem cadernos ou palavras, muita coisa a muita gente.
Da janela vê-se Um rapaz sentado no cais. Olha para a água, olha para os outros rapazes a nadar. Interroga-se: como é possível fazerem aquelas coisas, manterem-se à tona de água?
M não se apercebe de que é a sua vez, está a ver o jogo de futebol que está a dar na televisão. M lembra-se de, em miúdo, quando tinha jeito, a vida lhe parecer correr para a baliza. Mas, de repente, há uma falta, é o Destino, cego como um árbitro: o pai não queria que ele jogasse. No intervalo de um jogo deu-lhe duas bofetadas e fez dele um pastor, depois outras coisas. Agora, olha para a televisão, para o Barbosa que era tão bom que até fintou a própria carreira. Ele faria de maneira diferente se não tivesse levado duas bofetadas.
Enquanto observa o jogo de cartas, W conta um dos episódios mais marcantes da sua vida: quando mandava poesias anónimas para uma rapariga de quem gostava. Um dia disse-lhe que estava apaixonado por ela. Ela respondeu-lhe que estava apaixonado por outro. Quem? Não sei. Não sabes? Não sei. Ele contou-lhe que era o autor das cartas e, nessa altura, o jogo estava ganho: tinha o ás de trunfo.
Sentado no sofá, Z também se lembra de uma paixão. De como se sentia sozinho por gostar de uma cigana. Lembra-se do primeiro beijo que deram, no canto da boca. Toda a gente era contra aquela relação que era vivida às escondidas, que não era completa: era um beijo no canto da boca.
Para Y não há nada que valha a pena lembrar depois de o pai morrer. Y era o filho mais novo, o preferido. Daí para a frente não importa. Sem se lembrar que está a corte, volta a jogar copas.
Lá fora, o polícia ainda persegue B — que desce por umas escadas a conduzir a mota — e os degraus são seus aliados: a mota da polícia, mais robusta, mais gorda, fica com o escape preso na escada.
O rapaz que está sentado no cais atira-se, são quase cinco metros até à água. Quer aprender a nadar, quer estar junto dos outros em vez de ser o gordo em cima do cais. É mais ou menos como a vida de muita gente: atirar-se. Depois, esperar vir à tona.